Depois da cheia, a devastação
Moradores da Vila Farrapos, arrasada pela inundação, recomeçaram a vida em meados de junho com o temor de que a tragédia se repita
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Texto: Paulo Henrique Albano
Fotos: Petra Karenina
Fazia quase cinco anos desde a última vez em que estivera na região dos arredores da Arena do Grêmio. Apesar de torcedor tricolor fiel desde criança, nunca fui um frequentador assíduo de estádios de futebol, e já há algum tempo me limito a assistir às partidas somente pela TV. Na manhã ensolarada de quinta-feira, 13 de junho, o trajeto de carro pela Zona Norte de Porto Alegre foi marcado por um cenário que se repetiu ao longo dos quilômetros percorridos: intermináveis pilhas de entulhos amontoados pelas ruas dos bairros Anchieta, Navegantes e Humaitá. Na Avenida A.J. Renner, a linha marrom que marca o nível alcançado pela água estava na altura das janelas dos apartamentos do andar térreo. Nas calçadas da avenida, e também em frente à Arena, os carros que foram abandonados e completamente submersos pela enchente ainda aguardavam serem resgatados por seus proprietários. Completamente pintados pela sujeira da terra seca, os veículos pareciam ter saído diretamente do deserto pós-apocalíptico do filme Mad Max.
O percurso na Vila Farrapos iniciou pela Rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral. É lá que fica a Dico’s Academia, que fez parte de uma reportagem que escrevi em 2019 para o Jornal Enfoque, da Unisinos. A academia está no bairro há 15 anos. Enquanto realizava a limpeza do estabelecimento, o casal de professores de educação física Rodrigo Miotto e Amanda Oliveira, que administra a academia, contou que sua casa, a poucas ruas dali, também foi inundada. Antes do baixar das águas, que no bairro ocorreu somente cerca de um mês após a cheia, eles precisaram ficar no abrigo Nossa Senhora dos Navegantes com o filho e seis cachorros. O desafio era duplo: recuperar ao mesmo tempo a moradia e o empreendimento.
Dentro da academia, a marca d’água no pilar amarelo chegava quase até o teto, cerca de 2,5 metros de altura. Rodrigo estimava que para recuperar plenamente o local seriam necessários cerca de R$ 150 mil. Ele explicou que a água e o lodo danificaram o estofamento de aparelhos de musculação e o piso, além da ferrugem em equipamentos de metal. Também foram perdidos aparelhos de computador e de som, espelhos e portas. Para retomar a fonte de renda o mais rápido possível, a estratégia seria reabrir a academia assim que a limpeza for concluída e seguir operando com capacidade reduzida até que novos aparelhos pudessem ser adquiridos. Durante a conversa com Rodrigo e Amanda, descobri por acaso que o venezuelano Diego Calles, aluno da academia entrevistado por mim em 2019, conseguiu realizar o sonho de trazer a família para a capital gaúcha. Há cinco anos, ele me contou que imigrou sozinho para o Brasil devido à crise na Venezuela, mas lamentava a saudade da mãe e dos irmãos e sonhava trazê-los para cá.
A Rua Luiz Carlos Pinheiro Cabral foi um dos vários endereços da Vila Farrapos em que os moradores reclamaram da falta de recolhimento dos entulhos da enchente pela prefeitura. A meteorologia previa o retorno da chuva no fim de semana. O temor da comunidade era de que os entulhos fossem espalhados pelo aguaceiro, causando o entupimento de bueiros e, por consequência, a volta dos alagamentos. O morador Jorge Santos vestia botas pretas de borracha e luvas amarelas de proteção e utilizava uma pá para organizar os entulhos em um único monte com o intuito de deixar a calçada mais transitável em frente à Comunidade Cristã Igreja do Deus Vivo, onde uma missa seria realizada mais tarde naquele dia. Quando questionei sobre o cheiro forte na rua, ele respondeu que havia um cachorro morto debaixo da pilha de entulhos. Enquanto ajudava o vizinho, Valdir Wagner se queixava da ausência de serviços públicos. “Eu pago R$ 1,2 mil de IPTU e não tenho recolhimento de lixo e limpeza de bueiros”, reclamou, irritado.
Entre os objetos descartados nas calçadas estavam sofás, colchões, móveis, roupas, brinquedos, livros, álbuns fotográficos de família e mais uma infinidade de itens pessoais inutilizados pela água contaminada. O ponto mais crítico que encontramos no bairro foi a Rua 698. Trata-se de um trecho estreito de chão batido. Em uma situação normal, uma caminhonete de grande porte conseguiria andar pela rua, mesmo que com espaço limitado. No contexto atual, o trecho era intransitável para uma única pessoa a pé. As montanhas de entulhos em frente às residências chegavam a altura do teto. A extensão era tão grande que já não era possível enxergar o fim da rua. A líder comunitária Caroline Souza, moradora da Rua 698, recusou-se a chamar de lixo os entulhos descartados. Ela lembrou que são objetos pessoais que possuem valor sentimental e foram adquiridos com esforço. Caroline argumentou que não deseja deixar a casa em que mora mesmo após a enchente. “Nós já temos nossas casas próprias, não queremos Estadia Solidária, queremos que as nossas casas parem de alagar e que os entulhos sejam recolhidos”.
Mais tarde naquela quinta-feira, por volta das 15h, moradores inconformados usaram sofás, armários e outros móveis descartados para bloquear as ruas Frederico Mentz e Graciano Camozzato como forma de protesto contra a ausência do poder público.
Cenários de guerra em Porto Alegre
Durante a cobertura da imprensa sobre as cheias no RS, foi comum escutar jornalistas utilizando o termo “cenário de guerra” para descrever cidades e bairros afetados. A visita à Vila Farrapos apenas corroborou aquilo que já se via pela televisão e redes sociais: não é apenas força de expressão. Alguns cenários no bairro se assemelhavam mais a um bombardeio do que a uma enchente. A praça em frente à Paróquia Santíssima Trindade virou um cemitério de entulhos. Brinquedos como escorregadores e balanços foram arrastados para longe. A Creche João Paulo II teve o muro de concreto totalmente derrubado pela força da água. Na Escola Estadual Carlos Fagundes de Mello era possível observar janelas e portas quebradas, além de mesas e cadeiras arrastadas. Uma força-tarefa de limpeza do colégio estava em andamento com a ajuda do Exército. A Unidade de Saúde Farrapos seguia fechada. Lá, a linha marrom na parede evidenciava que a água chegara a quase três metros de altura. Os atendimentos médicos estavam sendo realizados em tendas de campanha montadas em frente à Praça do Sesi. O movimento de moradores e voluntários era intenso nesse ponto.
Além do volume inacreditável de entulhos, também chamavam a atenção a quantidade de pessoas com mangueiras de lava-jato limpando as casas, roupas e colchões molhados estendidos nos pátios para aproveitar o belo dia de sol forte, cartazes pendurados nos postes à procura de cachorros desaparecidos e longas filas de doações de marmita e água. As cadeiras azuis de ferro do velho Estádio Olímpico Monumental, que foram colocadas em paradas de ônibus da Vila Farrapos para serem utilizadas pela população após a mudança do Grêmio para a Arena, juntaram-se ao time de relíquias históricas demolidas pela enchente. Entre todas essas particularidades causadas pela cheia, talvez a mais difícil de descrever fosse justamente o cheiro. O trabalho dos repórteres, seja através de som, imagem ou texto, não consegue transmitir o odor forte e repulsivo a que os moradores de regiões atingidas foram obrigados a conviver mesmo após o recuo da água.
Quem vive de ajudar precisou ser ajudado
Outro lugar revisitado pela reportagem foi a Fundação Fé & Alegria, que fica na Rua José Luiz Perez Garcia. Trata-se de uma instituição filantrópica que presta serviços assistenciais e educativos. Representantes da fundação guiaram os estudantes da Unisinos pela Vila Farrapos durante os jornais comunitários Enfoque produzidos no bairro.
Conforme Fernando Barbosa, funcionário do setor administrativo da Fé & Alegria, muitos itens recém-adquiridos foram perdidos: computadores, freezers, mesas do refeitório infantil e mobiliário. Ele contou que demorou quase um mês para que fosse possível entrar na sede da instituição após o alagamento. “Comparado a antes, agora a situação está melhor, mas só melhorou mesmo após a chegada das bombas de drenagem”. Ele ressalta que o recomeço do zero tem que ser pensado um dia de cada vez, “para não despirocar a cabeça”.
Na visão dele, o único consolo na tragédia foi a solidariedade, união e força da comunidade e do voluntariado. Fernando apontou que não houve individualismo ou egoísmo entre os moradores do bairro. “Muitas pessoas voltaram para casa, mas não têm equipamentos de limpeza e nem como preparar refeições. Os moradores se avisam entre si onde está ocorrendo a entrega de donativos”.
Por volta de 13h, a temperatura marcava cerca de 31 graus. Depois de uma manhã caminhando pela Vila Farrapos, decidimos fazer uma pausa, afinal, a fotógrafa estava usando bota ortopédica imobilizadora devido a uma lesão no ligamento do tornozelo sofrida há algumas semanas. À procura de algum comércio aberto, constatamos que todos os estabelecimentos da Avenida Padre Leopoldo Brentano, em frente a Arena do Grêmio, ainda seguiam fechados. Já quase no fim da avenida, o bar e restaurante Santo Expedito foi o único que encontramos reaberto. O proprietário, Ruimar Capalonga, estava de aniversário justamente naquele 13 de junho em que éramos os únicos clientes no estabelecimento dele. Uma dessas coincidências aleatórias da vida. Quando dei os parabéns e perguntei quantos anos estava completando, Ruimar me respondeu que tem 60 e poucos. “Ele não revela a idade”, disse a esposa.
Ruimar administra o bar junto com a mulher e o irmão. O comércio funciona no endereço há 23 anos e era mais um entre tantos que teria que recomeçar praticamente do zero: perdeu geladeiras, freezers, equipamentos de cozinha, mesas e cadeiras. Enquanto a fotógrafa descansava por alguns minutos o pé lesionado em uma cadeira de plástico, Ruimar contou que ficou 21 dias ilhado no segundo piso acima do bar. Como a água não chegou ao andar superior, optou por não abandonar a casa em que mora. “Já vi outras enchentes aqui no bairro, mas nunca imaginei que a água chegaria nessa altura. Dessa vez a coisa foi feia”, lembrou.
A retomada econômica do Santo Expedito, assim como a de todo o comércio da Avenida Padre Leopoldo Brentano, dependia em grande parte do retorno das partidas de futebol do Grêmio na Arena. É nos dias de jogos que a renda dos bares e restaurantes é garantida. A projeção do clube, no cenário mais otimista, era de retorno ao estádio somente em agosto, o que preocupava os comerciantes locais.
Morador relembra cenas de filme
“Fui resgatado em cima do telhado no segundo andar de casa. As pessoas que faziam os resgates passaram na rua com um megafone avisando que iríamos ficar ilhados sem comida e água. Vocês tem noção de quão surreal é isso?”
O relato é de Alexsandro dos Santos, 45 anos, mas ele prefere ser chamado de Leco. “É assim que todo mundo me conhece há 30 anos”. Leco mora e trabalha na Rua Frederico Mentz, de frente para a Arena do Grêmio. A rua é a que possui a maior movimentação de carros e de comércio dentro da Vila Farrapos. Ele estava chegando no portão de casa com um garrafão de água e um pote de marmita em cada mão quando o abordei para conversar. Junto dele, o cão Totó, um poodle branco que há 13 anos é inseparável do dono.
Assim como muitos no bairro, o imóvel dele serve tanto como moradia quanto fonte de renda. No térreo funcionava a Lan House & Gráfica do Leco. Ali, oferecia serviços de xerox e impressão, produzia presentes personalizados, como camisas, canecas e kits de decoração, além de atuar como ponto de coleta e retirada de mercadorias de lojas virtuais. Não sobrou nada. Ao entrar na gráfica para conferir os estragos, era possível perceber a umidade e o mofo que seguiam impregnados nas paredes e no teto. Ele estimava um prejuízo de R$ 50 mil com maquinário e estoque inutilizados pela enchente. “Planejo retomar apenas a lan house, mas não o restante dos serviços”, explicou.
Leco relutou para sair de casa, pois não acreditava que a água chegaria aos quase 3 metros de altura do segundo piso onde mora, em cima da gráfica. “Perdi todas minhas roupas, fogão e equipamentos de cozinha”. Após serem resgatados, Leco e Totó ficaram 25 dias em um abrigo em Gravataí. Como grande parte dos acessos de trânsito estavam bloqueados em maio, não pôde ir à casa de amigos ou parentes em outros municípios. Ele ressaltou que foi muito bem tratado no abrigo, mas frisou que, por se tratar de uma situação de estresse em que muitas pessoas eram obrigadas a ficar confinadas em um espaço físico pequeno por um longo período de tempo, naturalmente a convivência causou alguns conflitos entre os abrigados com o decorrer das semanas.
Assim como diversas pessoas com quem conversei na Vila Farrapos, Leco enfrentava o desafio de recuperar bens pessoais e o comércio ao mesmo tempo. De acordo com ele, muitos vizinhos da Rua Frederico Mentz estavam traumatizados e planejavam ir embora. “Como o meu comércio está fixado há 18 anos nesse ponto e me gera uma boa renda, não pretendo me mudar”, explica.
Leco contou que os moradores estavam preocupados com a questão sanitária do bairro após a cheia. “Aumentou muito a proliferação de mosquitos e o aparecimento de ratos. Só eu peguei cinco ratos nos últimos dias, e são uns bichos enormes”. Ele disse que os próprios moradores da rua estavam se organizando para desentupir os bueiros caso a prefeitura não fizesse o serviço logo. Leco é um dos milhares de gaúchos que aguardavam a liberação do Auxílio Reconstrução. “R$ 5,1 mil não vão solucionar todos os problemas, mas já é alguma coisa. Quero usar o dinheiro para recuperar a minha loja e comprar um guarda-roupa”.
Durante o percurso pela Vila Farrapos, todos os moradores e comerciantes entrevistados exaltaram a solidariedade do voluntariado e da própria comunidade. Havia um consenso entre eles de que a união da sociedade civil foi o ponto positivo extraído da tragédia. Na Avenida Padre Leopoldo Brentano, um panelão de ferro gigante com volume de quase 5 mil litros, 87 centímetros de altura e 289 centímetros de largura cozinhava arroz carreteiro para distribuir à população no fim da tarde daquela quinta-feira. Para dar conta de ferver o fogo do panelão, era necessário uma quantidade enorme de lenha de eucalipto e de galões de água. A iniciativa era coordenada pelo goiano Gugu Nader, 49 anos, que veio ao estado em maio para realizar ações voluntárias em municípios atingidos. “Essa panela foi reconhecida pelo Guinness Book como a maior panela móvel do Brasil. Podem tirar fotos, só cuidem para não cair dentro”, alertou ele, bem-humorado, com um sorriso no rosto.
Dez dias depois de percorrer a Vila Farrapos para produzir esta reportagem, um mutirão de limpeza ocorreu no domingo, 23 de junho. A ação foi nomeada como “A Maior Faxina da História do Rio Grande do Sul” e contou com a participação de cerca de 2 mil voluntários e do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) para auxiliar na limpeza de ruas, casas e estabelecimentos comerciais dos bairros Humaitá e Vila Farrapos.
Reportagem publicada em julho de 2024 na edição impressa nº 7 da Josefa, revista experimental do curso de Jornalismo da Unisinos. Clique aqui para acessar a versão digital da revista.